quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Peso Borboleta

Hoje tinha morto três pessoas. Um casal e a filha.
Não sabia porquê, já não perguntava. O sentimento de justiça de que inicialmente precisava para não parar no momento errado ou para não se rebentar a si, já tinha amolecido nele. Era como uma pequena borboleta que enxotava do ombro com um simples estalar de dedos, quando dava por ela.
Não era por já não pensar neles como pessoas. Mas agora pensava sobretudo que eram o seu apartamento, o seu carro, as mamas da sua mulher, a velhice de ambos e acima de tudo o ensino especial do filho.
Mas havia dias em que o tempo passava quase a parar, como se a consciência estivesse a tentar sobreviver, e hoje tinha sido assim.
Mal entrou na sala pela janela aberta, soube que não estava ali sozinho, um homem roncava no sofá. Camisola de alças, cuecas e meias apenas. E barriga. Uma barriga imensa que conseguia demonstrar 40 anos de vida só com o seu movimento enorme e perpétuo. Acabou como tinha vivido. Inócuo. Uma pequena brisa morna e indiferente à espera do fim.
A mulher foi diferente.
Gritou, tremeu, pediu pela filha e descreveu toda a sua família, enquanto ele olhava à porta do quarto sem conseguir mexer-se ou desviar a arma. Não era arrependimento, era o tempo que teimava em quase parar. Quando finalmente fez o que fora ali fazer, notou que o corpo continuava a respirar tombado na cama. A mãe tinha escondido a filha com o seu corpo na esperança de a fazer viver.
A miúda, entre lágrimas, ranho e olhos muito abertos, não soltava um único som. Era como se todo aquele desamparo tivesse feito sempre parte da sua pequena vida. Ele puxou-a para si, pediu desculpa em silêncio e abraçou-a até ela parar de soluçar. Devagar beijou-lhe os cabelos e só quando ela lhe largou a mão conseguiu disparar.
Passou o resto da noite a sacudir e a esfregar os próprios ombros, mas nem por isso conseguiu dormir.

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